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Crônica 278 - "Vendo sem enxergar"


"... o céu está azul, bonito.
Já estamos no meio da tarde.
Tem um ventinho gostoso brincando com minha cara, com os cabelos...
Poucas nuvens no céu...
Repara os passarinhos: estão todos quietinhos, meio que dormindo nos galhos das árvores.
O sol ainda está forte... mas a luz dele já está meio amarelada. Daqui a pouco, no fim da tarde, fica mais amarelo.
As montanhas, lá longe, uma atrás da outra, mudam de cor. As mais distantes são azuladas. As mais próximas, esverdeadas.
Tem florzinhas pintando o capinzal.
Um bichinho passou correndo. Não dá pra saber o que foi.
Tem uma estrada, lá longe, com caminhões e automóveis passando.
Mas tem, também, um avião, bem no alto. Quase não dá pra você ver.
Terminou o gramado. Agora, estou pisando em cascalho fino. Levanto poeira enquanto eu ando."

"E como você sabe tudo isso se é cego, Tonico?"

"Sei muito mais, Zé. Nem dá tempo de te falar tudo o que vou percebendo.
Mas... só pra explicar um pouco...
Sei que o céu está azul porque senti o sol forte quase todo o tempo, no meu rosto. Só de vez em quando é que uma nuvenzinha passava aí por cima e tirava o calor.
A brisa, o ventinho, você até sente melhor se fechar os olhos.
Os passarinhos que estavam cantando até agora há pouco, só podem estar descansando, mais quietos, antes da revoada que vão fazer quando anoitecer, pra catar os insetos que começam a sair por aí em maior quantidade nessa hora.
E o sol já está me pegando de lado e não de cima. Só pode estar mais amarelado por causa da poeira suspensa no ar. Quando não está a pino, o sol tem que atravessar mais ar, mais poeira, mais atmosfera.
E as montanhas, quanto mais longe estão, vão se azulando porque o ar é azul. E quanto mais ar entre elas e nós, vão deixando de parecer verdes.
E já andei por lá. Sei das montanhas, uma atrás da outra, porque já subi e desci por elas.
As florzinhas estão aí no gramado junto com seu perfume, que dá pra sentir tranqüilamente. E como o perfume está suave, acredito que não há tantas flores nesta época. E só podem ser bem coloridas. Para atraírem os insetos.
O animalzinho que passou correndo nem você viu. Mas ouvimos seu tropel, baixinho. Era pequeno. Talvez um rato ou um gambazinho. Se o vento virar para cá, vamos tentar descobrir pelo cheiro dele.
O ruído abafado, lá em frente, me diz de que lado fica a estrada. Hoje, não está tão movimentada. Deve ser porque é domingo.
Não há tantos caminhões passando.
O avião que ouvi é um desses grandões, voando a mais de dez quilômetros de altura. É a altitude ideal para economizarem combustível.
E se sinto cascalho quando ando, estamos perto da estradinha que vai dar na chácara onde moro. É só virarmos para o lado em que o sol nos pega no rosto e vamos chegar lá num instante.
Sinta o cheiro dos eucaliptos à sua esquerda, Zé. E o vento soprando macio por entre as folhagens, fazendo um barulhinho gostoso. Do outro lado, sinta o perfume de goiabas maduras. As goiabeiras estão carregadas e as bicadas dos passarinhos destamparam o cheiro que chega até aqui, forte.
Se a gente andar mais um pouco, arrastando os pés para ouvir e sentir o cascalho, não vamos desviar para a grama da beirada da estradinha e perder a direção. Tem um pontilhão logo adiante. O barulho da água escorrendo no riacho mostra que estamos perto.
A chácara vem em seguida, depois da curva.
E... já sentiu o cheiro do café que a mamãe acabou de coar? Chega até aqui. Gostoso.
Hum. Tem bolo de fubá, também.
...
Zé... que barulho foi esse?
Você caiu? Bateu no quê?
Agora, você me pegou com esses barulhos diferentes..."

"Há, há... já estou levantando, Tonico. Não foi nada.
Estava treinando pra sentir, pra ver sem enxergar como você faz.
Errei no caminho. Não percebi o fim do cascalho e bati numa árvore.
Mas vou continuar treinando.
Vamos atrás do cheiro do café?"
"Vamos. Que a mamãe já começou a chamar a gente.
JÁ ESTAMOS CHEGANDO, MÃE...

Tem coisa mais bonita do que a mãe da gente, Zé?"

13.06.2003

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